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EXISTE BELEZA APESAR DA PANDEMIA
Por Roberto Rodrigues*
Tempos difíceis esses de isolamento. Longe de tudo e de quase todos, as pessoas realmente acabam se voltando para dentro de si mesmas, questionando velhos temas — como o sentido da vida, o valor da família e o das amizades verdadeiras —, às vezes, fazendo exames de consciência, e em geral assumindo compromissos de “melhorar”.
Mas, à medida que vão passando as semanas, um certo cansaço do confinamento também chega, com uma sensação de inutilidade, de estar “devendo” alguma coisa, de não estar cumprindo suas tarefas. E são tantos os debates a que a gente assiste todos os dias, tantos eventos em que outras pessoas estão fazendo o que delas se espera em suas diferentes atividades, que fica a impressão de estarmos numa estranha “vagabundagem”.
Não adianta participar virtualmente de reuniões de Conselhos, de palestras, entrar em debates, dar entrevistas, escrever artigos, receber audiências, gravar vídeos, falar ao telefone com um mundo de gente…
Ainda sobra tempo. Claro, tudo tem que ser mais objetivo, não acontece o célebre cafezinho das reuniões, as conversas vão sempre “direto ao ponto”.
Com isso, realmente dá para ver filmes, ajudar na casa, ler, estudar e, naturalmente, pensar bastante sobre os mais díspares assuntos. Estou “internado” na fazenda de meus filhos — que foi de meus pais, depois minha, e na qual morei décadas, desde 1948. E tenho usado uma parte do tempo para observar tudo o que acontece ao redor da casa, de onde saio apenas no fim da tarde para uma caminhada ou, eventualmente, fazer um giro para ver os serviços em andamento, de colheita, de plantio, de tratos culturais, enfim, de tudo o que acontece todos os dias, em todos os anos, nas fazendas produtivas que se ocupam de agricultura.
E encontrei um derivativo para o tempo disponível, que nem é tanto: apreciar a beleza.
Levanto muito cedo, ainda escuro, e vou para o terraço da casa. E acompanho o milagre da natureza.
Assisto ao sol espreguiçando no raiar da alvorada em seu leito eterno, o horizonte, levantar-se lentamente e “acender” o dia. Só isso já é de uma beleza extraordinária!
Logo depois, o silêncio da madrugada vai sendo rompido. Começa com o joão-de-barro convocando a família para construir suas casas. Logo depois, corruíras saem do ninho e fazem a sua saudação trinada ao amanhecer. E vêm em seguida sabiás, bem-te-vis, e pombas de todas as tribos arrulham ao longe, e se aproximam. Há uma alegria no ar quando cada espécie vai em busca do seu desjejum, representado por milhões de insetos que cortam o ar ou se escondem no gramado, e pelas sementes abundantes em toda a vegetação outonal. À medida que o sol se desprende do seu berço, as cores vão se revelando: diferentes tons de verde distinguem as espécies arbóreas, e as flores amarelas, rubras ou rosadas colorem o mundo. Paineiras na plenitude floral deixam o chão cor de rosa ou se oferecem como contraste ao azul- -celeste de infinita suavidade. E aí chega a turma barulhenta: papagaios, maritacas e periquitos vão sugar o melzinho do cálice das flores das paineiras. Junto vêm as curicacas, “pastando”no gramado verde os insetos atraídos pelas luzes da sede, aos quais se somam bandos de canarinhos-da-terra, amarelinhos, tingindo o verde da grama. É uma beleza sem fim, que se apresenta gratuita.
A brisa matinal começa a soprar, trazendo musicalmente os aromas todos conhecidos há décadas, e mesmo assim misteriosos.
Quando as últimas sombras da noite vão embora, há outra melodia, mais rouca, mas igualmente bela: é o ronco dos motores de máquinas e caminhões acionados por esses heróis anônimos que dia após dia, ano após ano, saem de suas casas no escuro da madrugada e vão fazer aquilo que sabem e que todos amamos: produzir para abastecer as mesas de cidadãos do Brasil e do mundo todo.
É muita beleza! Que alimenta a alma e ensina a lição suprema: a atividade agropecuária é determinada pela natureza, mandatoriamente. É ela que informa a hora de plantar, de cultivar e tratar, de colher. É ela, a natureza, que estabelece a forma pela qual se organizam as cadeias de distribuição, desde o campo até o prato.
Assim passa o dia. Todos os dias. Não importa se você está triste ou feliz, se chove torrencialmente, se está garoando ou pegando fogo lá fora, se faz calor escaldante ou se tem geada: o dia passa, o tempo passa, sob a batuta dessa maestrina suprema nomeada pelo Criador, a natureza.
E a noite virá de novo, “quando os passarinhos tristonhos terminam o seu cantar e os pirilampos risonhos começam a iluminar”, e outra beleza surge soberana: a lua, fonte milenar de inspiração para poetas e apaixonados de milhares de gerações.
E então bate uma saudade, morna, difusa, daquilo que ainda não foi vivido…
*Coordenador do Centro de Agronegócio da FGV e Embaixador Especial da FAO para as Cooperativas.
Texto extraído da Revista Saber Cooperar – Edição de nº30
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